RENATO SPAGNOL: Processo a Rolandina, sendo uma transgênero na Veneza do século XIV

1895
Foto: WorldImaginations/colunas de São Marco e São Todaro

Veneza, 20 de março de 1354. Rolandina Roncaglia, jovem prostituta, é arrastada por alguns homens ao cais de São Marcos, entre as colunas de São Marco e São Todaro, na famosa e turística, hoje, Praça de São Marcos. Ali, com o corpo coberto por uma veste de estopa, a fazem subir em uma pequena ‘montanha’ de lenha, para ela construída. A amarram e depois ateiam fogo. A presenciar o corpo da jovem arder no fogo estão os Senhores de Noite*, os quais observam com olhos de impetuosidade, as chamas que envolvem o frágil corpo de Rolandina; devem atestar a execução da sentença.  O que fez Rolandina para merecer uma morte assim atroz? Qual era a sua terrível culpa?

Era uma transgênero do século XIV. Isso bastava e avançava para merecer a morte.

A história é real, assim como as instituições, locais e os nomes envolvidos. Tudo trazido ao nosso conhecimento através da sofisticada caneta e genialidade do escritor italiano Marco Salvador, que no livro Processo a Rolandina, a real história de uma transgênero condenada à fogueira na Veneza medieval, reconstrói com romantismo o processo a Rolandina Roncaglia. Para produzir a obra, Salvador utilizou a sentença original, depositada no Arquivo de Estado de Veneza, e ainda, outros documentos históricos sobre o tratamento social, político e judiciário reservado a homossexuais e transgêneros na Veneza do XIVº e XVº séculos.

Foto: Renato Spagnol/Ponte di Rialto

Rolandina, emigrada a Veneza da pequena cidadezinha, Roncaglia, região de Padova, de dia vende ovos, entre os becos de Ruga dei Spezieri e Ruga dei Oresi. À noite, quando as sombras invadem os corredores dos pórticos, atende clientes para se prostituir em seu pequeno apartamento alugado de dois cômodos na Calle Della Nana, a 5 minutos a pé da Ponte di Rialto. Rolandina tem um projeto de vida, abrir uma pequena loja e ser independente, afastar de vez o drama da fome: “Interrogada sobre as razões pela qual cometia o pecado de sodomia, responde: para ganhar um pouco de dinheiro”.

O destino nefasto de Rolandina começa a ser traçado na manhã do dia 16 de setembro de 1353, quando um cliente, Giovanni Ferro, depois de se confessar na igreja Santa Maria Gloriosa, denuncia Rolandina pelo crime grave de sodomia. A denúncia se transformará no primeiro ato de uma série de investigações, humilhações e crueldades, que levaram as autoridades venezianas a descobrirem que, na verdade, Rolandina, nos arquivos da paróquia São Basílio Magno, sua cidade natal, é registrado como Rolandino: um transgênero, em síntese.

Imagem: Reprodução

A história da protagonista é narrada com delicadeza e romantismo, e em linguagem fiel à de seu tempo, assim, o autor imerge o leitor nos labirintos dos canais venezianos, e consente explorar a vida difícil nos bordéis de São Matteo e del Castelletto, e das periferias ocupadas por operários e dos matadouros malcheirosos de sangue e vísceras, que ali existiam, bem como aquela dos palácios do poder na praça São Marcos e bairros nobres, a exemplo Dorsoduro. O mergulho na história é total e nos faz imaginar estar lá para assistir.

A abordagem do escritor, que historiciza a questão transgênero e homossexual, também tem o mérito de remover essa importante questão do risco de estetização ou curvatura artificial do tema. De fato, o livro emerge fortemente da vida de seres de carne e sangue, de destinos trágicos, curvados sob o peso terrível do olhar social ou sob a violência das instituições, que lhes impõem a obrigação de se esconder, de sobreviver. É suficiente a brutalidade da linguagem da sentença de condenação – uma linguagem cheia de morbidez, que revela o terror do poder diante de certos comportamentos sexuais, que colocam em questão a ordem moral estabelecida pela igreja e o doge – chefe de estado – para captar todas as nuances do contexto da época:

“… E por causa deste fato foi necessário para o ato carnal por muitos homens e infinito aqui em Veneza, e muitos leigos no ato carnal em casa, e com muitos outros lugares, a pedido do mesmo que pensava que ela era do sexo feminino … Questionado se alguém, em pé com ele naquele ato, notasse seu membro, Rolandina disse não”.

A frase diz muito sobre os hábitos sexuais de séculos atrás (para não notar a anatomia de Rolandina durante o ato sexual revela muito neste sentido), bem como a obsessão do poder (secular e clerical) para absolver os clientes de Rolandina (entre que muitos nobres da Sereníssima) do pecado (porque eles não sabiam “de seu membro”), para fazê-lo cair, na íntegra, na cabeça de Rolandina.

A história de Rolandina é uma história de erradicação, pobreza, opressão e violência, mesmo de natureza sexual, determinada por um sistema brutal. Ela fala do passado, é claro, mas como qualquer leitor atento sabe, romances históricos são escritos acima de tudo para questionar o presente. Quão verdadeiramente podemos nos dizer longe daquelas eras negras?

* Os Senhores da Noite eram os nobres representantes dos seis distritos venezianos, encarregados de supervisionar, denunciar, processar e punir qualquer um culpado ou suspeito de um crime.

 

Fonte: O texto é uma breve retextualização (BLOG di Iside Gjergji) com informações do livro Processo a Rolandina ((Fernandel 2017), de Marco Salvador.