
Quem não tem uma criança na família e não se preocupa o tempo todo com a possibilidade de algo acontecer a ela? Talvez por isso, um vídeo se tornou tão popular na internet. Ele circula em redes sociais e mensagens, mostrando o flagrante da tentativa de sequestro de uma menina, salva por uma heróica e esperta vendedora de sorvete.
A câmera está na posição e no angulo perfeito para mostrar a vendedora, a menina e o suposto sequestrador, desde o início até o fim dos acontecimentos. O sequestrador aparenta estar falando ao telefone, perto de um carro, que está com a porta aberta.
Quando a menina vai passar na calçada, ao lado dessa porta e o sequestrador aparentemente vai empurrá-la para dentro do carro, momentos antes a vendedora corre e abraça a menina, a levando para longe do perigo.
Não há quem não pense: poderia ser minha filha(ou minha irmã, ou minha sobrinha, etc.). O vídeo consegue o efeito de alerta para esse tipo de situação e seus riscos. Mas também desperta a curiosidade: quando isso aconteceu? Quem é essa moça? Esse sequestrador está atuando em algum lugar? Será que é aqui, perto de casa?
O vídeo, carregado no Twitter por uma conta chamada @cheems_perrito (com apenas 4.000 seguidores), não teve muito impacto no início. No entanto, um ‘tweet citado’ de @iWolowitz (310.000 seguidores) sob o título “A heroína do dia” , fez a gravação se espalhar.
Aqui no Brasil, publicações que contêm o mesmo vídeo alcançaram centenas de milhares de ‘views’. Porém, notamos também que havia outros clipes muito parecidos. A mesma sorveteria de rua foi palco de outra tentativa de sequestro alguns meses antes, gravada de outro ângulo, mas com o mesmo carro e aparentemente as mesmas pessoas envolvidas.
Através da checagem reversa de imagens, a equipe do MonitoR7 descobriu a origem dos vídeos. A gravação original, que viralizou no mundo todo, foi postada pela primeira vez em 17 de fevereiro, por uma criadora de conteúdo equatoriana chamada Renata Chonlong. O vídeo é intitulado: “Incrível o que essa garota fez para ajudar essa menina”.
No vídeo, Chonlong atua como vendedora de sorvete. Em seu perfil no Facebook, há também os outros vídeos mencionados, que retratam situações semelhantes. Em uma transmissão ao vivo, que fez em 22 de fevereiro, Chonlong esclareceu que todas as situações que são mostradas em seus vídeos são encenadas. Ela explicou que cria esse tipo de conteúdo “para conscientizar” sobre os diferentes perigos que uma criança ou uma pessoa pode enfrentar.
Em nenhum momento é exibido algum aviso de que o vídeo é falso. Aliás, a produção desse tipo de vídeo, que simula situações reais e, aparentemente, tem o objetivo de conscientização, tem sido cada vez mais frequente. Especialmente em aplicativos de vídeos curtos, que estão com um público em crescimento.

Para quem acompanha a conta e vê sempre as mesmas pessoas atuando nos vídeos, é fácil entender que se trata de uma simulação. Mas quando o vídeo é retirado do canal e distribuído em mensagens ou publicado em outra rede social, a gravação parece retratar uma situação real.
Especialmente porque, nestes casos, os vídeos chegam a ser alterados, para serem ainda mais convincentes. No vídeo original de Renata Cholong, é possível identificar a marca de sorvete vendida, que tem um nome diferente do usado no Brasil. Os letreiros também estão em espanhol. Na versão distribuída em mensagens e redes sociais, estes detalhes estão borrados.
Para Issaaf Karhawi, pesquisadora em Comunicação Digital na Universidade de São Paulo(USP), isso causa uma perda do propósito de conscientização, dado que ele é espalhado como algo real e não como um alerta: “a impossibilidade de identificar a intencionalidade de uma informação também configura desinformação”.
A intenção, para a pesquisadora, é uma importante característica das fake news, pois elas são feitas para “causar confusão, usando ou informações falsas ou imprecisas”. Quanto mais o vídeo parece retratar uma situação que realmente aconteceu, mais atrai audiência. Mas, ao mesmo tempo, se torna menos educativo e mais sensacionalista. Em vez de educar, só assusta.
De acordo com Karhawi, a viralização de vídeos como esse é apenas um sintoma da época em que vivemos e como é urgente a educação para as mídias sociais: “É urgente que desenvolvamos, um letramento digital que passa, por exemplo, pelo reconhecimento do funcionamento das redes, da estrutura de fake news e até do consumo de conteúdos publicados por influenciadores digitais, por exemplo”, conclui a especialista.
O vídeo viralizado em redes sociais, portanto, não mostra uma tentativa real de sequestro e a atuação heróica de uma “vendedora de sorvete”. É um dos vários vídeos de uma produtora de conteúdo, com uma encenação.
O vídeo é bem produzido, bem gravado e bem editado. Tanto, que é muito convincente. Mas pela falta de informar o espectador sobre a simulação, a gravação consegue atrair uma grande audiência, mas acaba perdendo seu caráter pretensamente educativo. A manipulação de detalhes do vídeo original, para distribuição em mensagens demonstra ainda mais o objetivo de criar uma informação falsa.
Se você cuida de alguma criança, vale ficar com a mensagem de manter sempre a atenção. Mas não precisa correr atrás de informações sobre o “sequestrador” mostrado no vídeo. Ou mesmo se preocupar em homenagear a “heróica vendedora de sorvete”.
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FONTE: R7